domingo, 8 de junho de 2008

Ao devorador de planetas, antiácido

“Life's not a bitch.Life is a beautiful woman.You only call her a bitch because she won't let you get that pussy,Maybe she didn't feel y'all shared any similar interests
Or maybe you're just an asshole who couldn't sweet talk the princess.”

Ian Matthias “Aesop Rock” Bavitz

Ontem e possivelmente todos os dias da minha vida.

Levava meu cão Rakim todas as manhãs para passear, antes das 7 horas. Era um Golden Retriever de seis anos que eu mantinha em meu apartamento de exatos 87m², sem contar a garagem que eu não usava. Todas as manhãs descia pela escadaria do prédio desde o 14º andar até o térreo, com Rakim ofegante em uma coleira vermelha. Aquela caminhada era um prazer, mesmo se durasse apenas alguns minutos, pois eu apenas esperava Rakim liberar a carga fecal, atravessava a rua e voltava para meu apartamento. Mas eram minutos de silêncio, um momento onde eu podia pensar em qualquer coisa e ser quem eu quisesse. Alguns dias eu me tornava um grande cineasta, me arrumando para a cerimônia de um festival, pedindo a minha linda esposa, uma atriz loura peituda sem-talento, para ajeitar minha gravata, ou nos meus dias mais carentes, me pagar um boquete. Outros dias eu era um cara normal, não assim “normal” quanto eu sou agora, escolhia uma profissão diferente, gerente de loja de roupa, taxista, publicitário, ou qualquer outra merda. Houve uma época onde eu fazia poesia, formulava toda ela em minha cabeça, e me esquecia dela toda na primeira buzina que eu ouvia. Tudo isso em, no máximo, 7 minutos, quando o intestino do Rakim não colaborava com a minha paciência. Queria que esse bicho não tivesse cu.
Costumo sempre olhar para baixo, mesmo quando estou andando. Não sei se é por um problema de postura, aliás, venho adquirindo uma corcunda através dos tempos, ou talvez seja minha auto-cobrança tão pesada que faz com que minha cabeça penda para frente e meu corpo se encurve. O que me faz sempre reparar na sujeira da rua, nas coisas que são perdidas por pessoas distraídas, normalmente moedas de cinco centavos, ou simplesmente nos meus pares de tênis brancos, que normalmente são encardidos. Na minha frente segue Rakim afobado, tentando sempre puxar com força para ir mais rápido no destino onde seu faro manda-lhe ir.
Subia pelo elevador de serviço quando não havia ninguém para entrar junto comigo, pois Rakim é um pouco festeiro com estranhos, comigo ele é um pau no cu. Entrava já arrancando a coleira e o bicho corria para seu pote de água, onde se chafurdava por uns três minutos. Ia até meu quarto, escolhia a roupa, me despia de meu conjunto de moletom cinza-mescla, e entrava no banheiro nu. O banho normalmente era demorado, pois tudo tinha de ser lavado duas ou mais vezes, dependendo da noite anterior. A escovação dental já ocorria lá mesmo no chuveiro, junto com todas as partes do meu corpo não tão atraente, mas nunca vi problema nisso. Secava-me com calma e novamente saia nu do banheiro, e ainda conseguia ouvir minha falecida velha mãe gritando: ‘Zezinho, vai pegar uma pneumonia saindo de cabelo molhado nessa friaca!’. Zezinho. Colocava uma roupa sempre combinando com meu tênis branco, essa era minha única exigência, inclusive em casamentos eu não os dispensava, nem que tivesse de comprar um novo par.
Saía de casa, quase nunca apressado, sempre adiantado para não ter de ficar bufando dentro do carro por causa do trânsito e reclamando a falta de um som automotivo. Ia cantarolando qualquer música, ou ensaiando algumas frases de impacto se ocorresse uma reunião de imediato. Aquelas frases de e-mail corrente, coisas cafonas e cristãs, que impressionavam muito meu chefe e a todos os meus colegas de trabalho. Lá ninguém era meu amigo, todos eram colegas e eu nunca participava das confraternizações, apenas quando tinham as festas particulares de cocaine sessions na casa de um cara do atendimento. Ia por causa das putas, e não pela cocaína.
Já chegando ao escritório, cumprimentava a secretária Jaqueline com um aceno de cabeça e um sorriso tcharan. Sentava na minha mesa e logo me programava para fazer tudo da mesma maneira que todos os dias. O teclado do computador da minha frente já estava todo bege e as teclas todas duras, e no vão de cada uma delas devia ter mais bosta e meleca de nariz que qualquer outra coisa, mas eu não sentia nojo porque era tudo meu. Minha cadeira rangia a qualquer movimento, uma facada na orelha e sempre pensava que alguém estava prestes a me atacar com uma caneta ponta-fina ou uma cola bastão GG a qualquer momento só por causa do irritante barulhinho da minha cadeira de rodinhas. Mas eu era o contador, e usava óculos com armação transparente. Não se deve bater em um homem com óculos. Nunca.
O banheiro do escritório era amplo e bem limpo, tudo branco. Até mais limpo que o meu que tinha pegadas do Rakim em tudo porque o trinco havia quebrado e o animal ficava passeando dentro do box que é protegido apenas por uma fina cortina de plástico. Um zelador ficava lá todos os dias limpando os assentos e trocando os lixos. Sempre muito simpático apesar de seu emprego de merda, e minha vontade era de defecar naquele chão brilhante, bem no meio do banheiro. Cagando e olhando fixamente para o Seu Antônio. Levantar as calças, sair sem lavar as mãos e ainda cumprimentar algum estagiário com um bom aperto de mão e aquele leve tapinha no rosto, “bom garoto”.


**

I.

─ Tô de folga hoje, Lelo. Vamos almoçar?
─ Com certeza ─ respondeu do outro lado da linha, bem animado.
Adiantado saí de casa as 10, queria dar uma volta no centro da cidade, sentar em algum banco e olhar as mulheres do meu ângulo predileto. Planejei todo o itinerário antes de sair de casa e o segui à risca. Sentei bem no meio do banco para ninguém sentar do meu lado, é claro. Tentei contar a quantidade de bundas bonitas que passavam bem perto de mim, quase encostando nos meus joelhos e tropeçando no meu pé 42. Eu tentava usar todos os meus sentidos para absorver ao máximo minha experiência, gerenciando um órgão de cada vez, com seus respectivos potenciais. Meus olhos não exigiam esforço, era só ver e pronto, apesar de sua maior importância no espetáculo pré-almoço. O olfato já trabalhava com ele de uma forma mais cronometrada e matemática. Quando uma dama passava bem perto de mim, a via desfilar na minha frente e esperava 3 segundos para sentir a lufada de perfume que ela deslocava com seu corpo, e aquilo me excitava, mas sou discreto e quem me olhasse sentado naquele banco, quieto, acharia que eu sou um cara qualquer, uma vulgaridade descartável, fazendo nada com a mão no bolso.
O ato de colocar a mão direita no bolso, nesse caso, não era para nada senão massagear meus testículos, tateando-os bem devagar junto com o ritmo das bundas que passavam por mim. O movimento dos músculos e tecido adiposo das nádegas entraram em minha mente e eram tão cadenciados que pareciam dizer meu nome como uma torcida organizada: JO-SÉ, JO-SÉ... Cada nádega balançante representava uma sílaba... JO-SÉ, JO-SÉ... Agora só as flácidas! JOOOOO-SÉiÉiÉiÉiÉiÉ!! Gosto de quase todos os bumbuns, desde que partam de cinturas e quadris finos. Aperta-los é um dos meus maiores prazeres, mas faz tempo que não faço isso, e talvez seja o porquê dessas minhas empreitadas em bancos de praça.
Depois de alguns minutos sentado ali, minhas costas já começaram a incomodar com o encosto do banco madeira-sim-madeira-não. Minha coluna não era reta e isso causava um desconforto quando me recostava em algo duro. Um pouco acima da região lombar havia quatro vértebras que roçavam na madeira do banco, causando uma irritação inimaginável, e eu até conseguia ver a pele sendo desatada da vértebra como quando se descasca uma laranja, vagarosamente, e isso provocando uma coceira, e o menor movimento que fizesse, um ardor agudo. Isso sem contar a minha fome, pois já eram quinze pras onze e ainda não era tempo de me encontrar com Lelo no Restaurante Verne, nosso favorito. Essa fome, porém, me lembrou que devia me ater ao meu exercício sensorial, depois da distração inconveniente.
Comecei por molhar meus lábios secos da brisa com minha língua azeda. Depois tentei sentir o gosto do meu próprio hálito de aligátor, colocando a língua toda no céu da boca e depois soltando várias vezes, fazendo com que sentisse aquele sabor em todo o meu aparelho bucal. ‘Lá vem uma daquelas’, pensei. O exercício do paladar era muito bom. A menina passou, vi, esperei a lufada de Carolina Herrera, acariciei meus testículos gentilmente, ajeitei minha coluna e passei a ponta da língua acima do meu lábio superior onde estava suado. Aquele gosto salgado me fez imaginar o gosto que teria aquele bumbum, que ficou a manhã inteira trabalhando dentro daquelas calças brancas. Pelo seu rebolado, devia ser manicura. O movimento da língua acima do lábio foi rápido, apenas coletei um pouco das bolhas de suor da região bigodal e fechei a boca. Ninguém quer ser visto com a língua de fora igual um velho tarado. Eu sou um jovem tarado, tenho que ter mais compostura. Velhos tarados não têm pudor, são uns macacos, falam com a boca cheia de comida, comentam sobre as netas gostosinhas entre os convivas, ficam indignados com a alta do preço de fraldas geriátricas e o preço do Aldol. E aquele belo perfume de naftalina das roupas em tom pastel, ah que saudades de meu avô.
Quando passavam sozinhas, podia escutar apenas a sola de seus sapatos na calçada e o roçar das coxas uma na outra, como um chimbau constante. Quando elas vinham em dupla, me atentava em ouvir algum trecho de conversa, mas sempre falam baixo, são muito discretas e a prosa é sobre família ou trabalho. O que é diferente quando estão em três ou mais. Aí, não sei qual a razão, se sentem poderosas o bastante para falar alto, gargalharem e demonstrar com o polegar e o indicador o tamanho do mini-pau do “pega” da semana. Mas não se sabe ao certo se estão sendo sinceras, muitas delas têm uma vida sexual ativo-fictícia. Um único olhar pode fazê-las entrar em um mundo de fantasia de Alice, e inventarem uma história em menos de meio minuto sobre um cara que conheceu semana passada, casado, arquiteto, “Ah, um Deus na cama! Fez tudo o que eu mandei!” e continuar contando, juntando fatias de outros relatos que ouviu, montando seu quebra cabeça, no gogó, melhor que Mos Def no freestyle. Para mim, tudo isso ocorre sob o efeito Doppler, infelizmente. São apenas segundos que consigo captar claramente, no máximo três quando a praça ainda está vazia. Mas era quarta-feira, 11h30, grande fluxo, aqueles andinos tocando, “levanta vagabundo”. Tirei as mãos do bolso, apertei meu cinto, dei uma estalada no pescoço e segui a esquerda, em direção ao Verne.
O horário de pico no restaurante é sempre à 13h, por isso sempre prefiro chegar lá cedo, almoçar bem e jogar meia-hora de papo pro ar, degustando cafezinho em copo plástico. Quando vou sozinho, faço as cruzadinhas do jornal. Não demorou nem 5 minutos desde que plantei meus pés na calçada cafona do Verne e já avistei Lelo atravessando a rua com cara de afobadinho, desengonçado com uma sacola cheia de frutas em um dos braços e uma pequena mochila velha de lona nas costas, amarrotando toda a sua camisa. Gordo do caralho.
─ Fala monstro! ─ disse apalpando seu ombro e bagunçando seu cabelo.
─ Que fome da porra! Não deu tempo de comer hoje de manhã, tive que sair correndo no laboratório, tirar sangue. Sabe como é, né? To só me fodendo por causa de colesterol e tudo mais. Mas, não posso morrer no leito de um hospital por nada. Tenho que morrer de alguma coisa, que seja de comida. ─ ele tem o dom de dizer só asneiras e nas últimas frases sempre falar algo que vai me deixar refletindo pelo resto do dia.
Depois dos cumprimentos e do breve discurso do mais novo candidato a paciente cardíaco, entramos pela porta engraçada do Verne, que ficava, adoravelmente, no vértice da construção. O restaurante não tinha placas, só um tapete com o nome do estabelecimento em arial caixa-alta, isso porque o dono do lugar era um homem reservado e não gostava de poluir a fachada sem-graça com uma logomarca extravagante. Não havia mesas para fora, e eram poucas as que tinham lá dentro. O lugar era imenso, com um pé-direito tão alto que os ventiladores de teto se inutilizaram e serviam como casa para os aracnídeos e outros bichos que conseguiam alcançar o cume. Imagino se um dia colocarem as pás para funcionar. Nos afogaríamos em uma avalanche de pó, casulos de mariposa e teias de aranha. Uma crise geral de pânico e renite. Mas o interruptor está fora do alcance de alguém com menos de 2 metros e pouco.
Enquanto Lelo se livrava de suas tranqueiras e as largava na mesa sem nenhuma delicadeza, fui ao banheiro lavar as mãos sujas da praça, refúgio dos sinantrópicos. Lavei com bastante sabão cor-de-rosa até a metade do antebraço, pressionando a válvula da torneira com o cotovelo, enxagüei tudo com calma e sequei com bastante papel, pra não ter que secar na roupa. Saí do toalete e Lelo já estava se servindo no buffet, colocando no prato tudo que via na frente, como se o mundo fosse explodir em cinco, quatro, três, dois, dois-e-meio, um. Fui até a pilha de pratos e Lelo já saiu para sentar-se. O menu não variava muito, era sempre aquilo ali, sem muitas cores, tudo meio bege e marrom, assim como a decoração, tudo meio bege e marrom, assim como a clientela, tudo meio bege e marrom, assim como os funcionários. Servi um prato modesto, exatos 517 gramas, sem salada, pois hoje ventava, apesar da temperatura amena. Dirigi-me a mesa e meu amigo oleoso já havia começado a se deliciar. Silvio, o garçom das bebidas se aproximou:
─ O que vai ser para os senhores? Norteña? Del Valle? ─ perguntou simpático.
─ Traz um Del Valle de Pêssego pra gente, Silvio. ─ disse Lelo.
─ Não, não. Traz um refri qualquer pra mim, de garrafa. Aqueles de 1 real. ─ falei cortando o barato.
─ Que viadagem é essa agora, José? A gente sempre pede nosso suquinho. Saudável, pra manter a barriguinha.
─ Ô Lelo, dá um tempo. Silvio traz o refri pra mim e pro afobadinho aqui traz o de pêssego na lata mesmo.
Silvio saiu rapidamente atender as outras mesas e num pulo foi até a cozinha. Muito habilidoso. Nesse tempo até ele voltar, Lelo ficou enchendo meu saco.
─ Pô, José! Queria rachar o suco contigo, meu.
─ Esse suco vem dentro de uma caixa, parei de tomar coisa em caixa de papelão! ─ fui incisivo e não houve argumentos.
Lelo me conhecia bem, sabia que quando eu cismava com alguma coisa é porque eu tinha razão. Nem eu confiava tanto em mim, quanto ele. Inclusive, ele sabia o que eu pensava quando olhava ao redor do restaurante. Que quando eu olhava para o teto era porque imaginava folículos da madeira do telhado roída por cupins entrando pelas minhas narinas. Eu observava os caras que comiam na última fileira de mesas lá no fundo, um ao lado do outro, reproduzindo a santa ceia, ninguém na frente deles, como se eles fossem da segurança, inspecionando os clientes. Imaginava que eles fossem um time de vôlei ou alguma máfia fodida que seqüestrava apenas crianças pra fazer chantagem aos devedores, e as alimentavam com McLanche Feliz todos os dias causando na criança uma síndrome de Estocolmo infantil, fazendo com que quando fossem adolescentes culpassem seus pais por não saberem o que prestar no vestibular, mal sabendo que na verdade a MTV fez isso com elas. Enfim, Lelo sabia o porquê da minha decisão de recusar sucos de caixa, e por isso calou-se. Ele sabia que lá dentro havia uma possibilidade de ter algum filhote de ratazana morto, mergulhado em líquido grosso amarelo sabor pêssego, e que quando servisse no copo e bebesse goela adentro, vários minúsculos pêlos do animal iriam juntos, mini-vetores entrando por dentro da boca, um se instalando no meio dos dentes lá de trás, outro descendo até a garganta e grudando na laringe fazendo com ele ficasse tossindo por algum tempo até o pelinho descer ao estômago como todos os outros cem da leva anterior.
Silvio chegou com as bebidas. Abriu a garrafa na minha frente, para meu alívio. Lelo abriu sua latinha e despejou em um copo comprido com gelo. Enquanto o prato dele já havia sido comido quase por inteiro, eu ainda estava no começo. Fiz uma refeição boa, em silêncio, satisfeito, sem me empanturrar. Ao contrário de Lelo que agora sofria com uma barriga inchada que só após uma sessão de arrotos iria diminuir. Parecia Chaplin dando soquinhos na boca do estômago:
─ Here we go! Preciso ir ao toalete. ─ disse ele se levantando apressado.
─ Vou pagando lá no caixa, te espero na mesa do cafezinho.
Fui indo em direção ao caixa. Consegui enxergar Lelo, entrando na porta do banheiro e soltei um sorriso espontâneo, que inesperadamente chamou a atenção de uma mesa a minha frente com três meninas, duas delas muito bonitas, a outra de costas nem um pouco. Passei olhando discretamente, nada galanteador. Paguei a conta, no total de 24,70, mais 10% pro Silvio = 27,17 e uma balinha pra arredondar. Alguns passos para trás estava a mesa do café, peguei o copo, enchi até a borda e misturei uma pequena colherada de açúcar. Sentei em uma mesa ao lado e fiquei assoprando o café até Lelo chegar e se servir também. Quando ele chegou já foi tropeçando na perna da mesa fazendo com que o café quente escorresse nos meus dedos:
─ Putz, foi mal. ─ olhando para trás e servindo o café desatento.
─ No problemo, friendo. ─ decidi não esquentar a cabeça com isso, andava meio impaciente nos últimos dias por causa do trabalho. E em questão de segundos que comecei a pensar no serviço, que Lelo, se sentando, perguntou:
─ Mas me fala, José, porque que hoje você tá de folga?
─ Me deram um tempo, depois que eu discuti ontem com o Seu Antônio, o zelador. O cara deixou tudo molhado o chão do banheiro e quis que eu não ficasse puto. Talvez seja melhor eu tirar o dia de hoje pra fazer coisas do meu gosto. Não quero me estressar com nada hoje.

II.

Despedi-me de Lelo rapidamente. Ele saiu atravessando a rua, e rumou o mesmo caminho que tinha feito quando me encontrou em frente ao restaurante. Comia uma banana da sua sacola de frutas e desapareceu do meu campo de vista em 4 segundos. No meu caso, preferi andar na direção oposta, peguei a primeira rua a esquerda e desejei andar ela inteira, porém ela terminou duas quadras depois em um parquinho caindo aos pedaços e sem sinal algum de crianças, estava mais parecendo um ponto de encontro de cafetões e usuários de crack. Novamente tomei a rua à esquerda, um pouco atrás de mim, e continuei andando, com o olhar fixo no chão, mão esquerda no bolso da jaqueta e um dos copinhos de café dilacerados na outra. A mente em branco, sem culpa nem ressentimentos. Porém, logo comecei a me preocupar com essa falta de preocupação. Lembrei de um amigo da infância, e que saíamos para desenhar no muro dos outros, sem propósito algum, apenas rabiscar e sair correndo, rabiscar e sair correndo. Senti falta dos meus momentos em que minha mente estava em branco e eu nem sequer me preocupava com tal coisa. Talvez seja esse o motivo porque as crianças dão tanta risada, não porque são burras, mas porque não tem preocupações. Tudo é rabiscar e sair correndo. Não há pesares no coração, nem mesmo quando se briga com um amigo por ele ter dado a mão para a sua namoradinha. Queria sentir inocência novamente, poder fazer um amigo novo em menos de um quarto de hora, ou jogar futebol com bola de vôlei. A vida se tornou meio bege e marrom. Mas por algum motivo hoje é o dia mais feliz de minha vida e não há pirâmide alguma que me faça esquecer disso.
Já me encontrava em uma avenida agitada, com gente pra caralho. Prédios para todos os lados, um querendo ser mais alto que o outro. Passei inclusive em frente ao prédio onde fica o escritório onde eu trabalho. Foi a primeira vez em oito anos de empresa que reparei a forma que o prédio tinha. Não era apenas uma porta giratória com sensor de metais. Havia toda uma imensidão arrogante com pastilhas pretas e brancas e vidros espelhados, tudo parecia pender sobre meu corpo, como se já não bastasse minhas próprias corcundas. Todas as janelas estavam fechadas e os pingos dos ar-condicionados caíam sobre a calçada. Contemplei o máximo que pude, sem dar tempo de passar vergonha. Atravessei a avenida com dificuldade e me sentei em um ponto de ônibus onde descansei um pouco minhas pernas, esticando-as e tentando alcançar a ponta das mãos com a ponta dos pés. Sem êxito. Mais uma vez estava de frente ao edifício que me engole todos os dias das 9 as 5, e o observava do outro lado da rua, agora parecendo menos imponente e com a aparência um pouco desgastada. E quanto mais eu me afastasse dele, mais me sentiria grande ao ponto de poder pegar ele com os meus dedos e esmaga-lo como se fosse um copinho de café.
As pessoas andavam e o que eu conseguia ver eram barras de calças e sapatos com cadarços de laços bem apertados. Bosta de cachorro, papel de bala, ponta de cigarro. E a única coisa que me fazia ajeitar as costas e olhar reto era um belo tornozelo em sapatos de salto alto. A transformação era instantânea, mas não rápida o bastante. Eu continuava sendo uma vulgaridade descartável, imperceptível, corcunda e com quase dois metros de altura. Se não houvesse algumas leis da física, pessoas passariam através de meu corpo como se eu fosse apenas mais um conjunto de moléculas de oxigênio, de calças jeans de corte reto e barato. Não há o que fazer senão ir em frente, seguir e ver até onde eu chego. Sorte minha se encontrasse alguma nota de cinqüenta reais no chão ou recebesse um sorriso de qualquer mulher que fosse. A sorte ficou bem lá pra trás, acompanhando Lelo, e estou indo de encontro com o azar daqui a uma quadra, depois de atravessar a rua. Lá estava ela bem em frente a um prédio de arquitetura ousada, com uma panificadora careira no térreo. Fumava um cigarro e tomava suco de laranja em uma mesa de plástico com um guarda-sol fechado no meio. Tinha uma tatuagem colorida no braço delicado. Brilhantes cabelos negros e olhar de sereia, sorriso rasgado. Toda de preto-luto, estava a 12 passos a minha frente, me aproximei devagar. Olá azar, como vai você hoje nessa tarde tão agradável?

*

III.

Caí sem vida por ignorar tudo o que estava ao meu redor, por não saber onde eu pisava, que ar eu inspirava a cada 3 segundos com meus fracos pulmões. Morri ignorante, pequeno e de forma imbecil. Um peso de papel feito de mármore em forma de pirâmide atirado da janela do vigésimo primeiro andar de um edifício, bem no meio da cabeça com a ponta superior do objeto, que nem era tão pontiagudo, mas pesado o bastante para rachar meu crânio e adentrar alguns milímetros no meu cérebro se transformando em um trapézio. Consegui ouvir o barulho do osso quebrando. Era um som profundo e grave como um surdo. Escutei as migalhas ósseas se espalhando e misturando ao sangue grosso. Areia no meio de um prato de quiabo. Só tive tempo de falar “fodeu”, mas nem havia a palavra na garganta, ninguém me ouviu, nem mesmo minha sereia. Rosebud.
Tudo se encontrou em perfeita harmonia, nada estava fora do lugar. As coisas tinham um sentido, e minha atitude de lutar com minha consciência me rendeu um quarto de segundo de esperança até que minha morte fosse decretada. A menina a quem me referi como ‘azar’, permaneceu anônima, mas é a imagem mais nítida em minha memória. Uma das figuras mais belas em que meus olhos já pousaram. Uma atitude única e rara em minha vida foi ter tomado o fôlego, ajeitado a corcunda, empinado meu nariz e ter ido dizer apenas um oi para a pobre infeliz que ao me dar um pouco de sua nobre atenção, já me enxergou chorando sangue e caindo sobre o chão como um pedaço de carne. Eu esperava seus braços me abraçando e um choro desesperado chamando meu nome, mas eu era apenas um estranho em sua vida, talvez mais um filho da puta que quer apenas chegar à sua calcinha ao som de Sinatra. “Azar” foi meu anjo. Permaneceu sentada em choque, enquanto eu estava congelado com os olhos saltados. Não gritou, não chegou perto de mim, apenas colocou suas mãos em cima dos joelhos e chorando olhou para os lados. Eu, se pudesse, soltaria uma longa gargalhada e diria a ela para não se preocupar tanto com o acontecimento, pois isso acontece todos os dias comigo, tudo só para acalmá-la de sua aflição.
Agora me sinto em plena purificação. Resta-me uma fração de consciência. Me sinto puro pós-morto. Não encontrei ninguém ainda de meus familiares, acho que vou viver a eternidade solitário e esse paraíso não é muito diferente da Terra, não houve sequer uma festa de boas-vindas. Se eu tivesse me matado acho que agora estaria chorando de desespero, tentando me debater entre as paredes, porém, sem êxito, não há paredes nem sequer sensações táteis. Descubro uma coisa a cada instante, ou a falta dessa coisa. Porém, estou pleno e convicto, não há ressentimentos com as forças divinas e nem arrependimentos de minha vida. Sinto-me como uma menina tímida se descobrindo, que primeiro se deita na cama, sentindo o seu peso no lençol e no colchão, depois se coloca em posição de cachorrinho e se enxerga no espelho, de costas. Observa toda a sua forma submissa, desde as solas dos pés avermelhadas até suas coxas, vagina e ânus. A mais perfeita purificação de sua consciência e conhecimento de seu corpo. Estou com o cu virado para o destino. Agora é aguardar um ponta-pé inicial da redenção para uma nova vida ou continuar esperando com as mãos e joelhos no chão a grande varada divina inquisitiva.

fim.

*

Dedicado a todos vocês. E em homenagem ao meu avô José Osmar e seu irmão Lelo. Espero que gostem.